domingo, 23 de agosto de 2015


#MemoriasVividas:

 

“Eu e os Trigais...!”


“... Numa só semente de trigo há mais
vida do que num montão de feno...!”

Khalil Gibran

 

                             Eis-me de repente vivendo à época em que nada tinha de filosofias e reflexões profundas. O existir era feito de acontecimentos ordenados, simples, singelos. A mão já existia e o corpo todo, é claro, no ato de tocar o feijão exposto ao sol.                                 Há a época dos laranjais e a gente existia, colhendo-as sob o frio de manhas e tardes invernais... O Sol era longínquo... Saudoso... Ah, tinha também a festa dos pinhões. No campo lindo e limpo, simplesmente recolhia-os do chão, embaixo de gigantescos e seculares pinheiros. Uma carroça cheia de cobertores, esteiras e lanches, todos naturais e naturalíssimos éramos todos. Tinha também o tempo de mãos leves e olhos de enlevo e paixão a descobri ninhos e passar a mão nas flores que cobriam parte dos campos. Elas que já nos deixavam recados de que a primavera estava próxima.


Ah, e tinha o trigo. Ah... O trigo. Ele teimava com o vento e animava a memória das brincadeiras. Todas elas guardadíssimas. Inesquecíveis. Um vento, quando os trigais, já encachados e ainda verdes, batia-lhes, pareciam ondas de um “mar” desconhecido... Apenas imaginado. Nós tínhamos um “mar”... Um “mar” de trigais fazendo “ondas” nos campos. Ah, lembranças de todo seu processo de nascimento... Primeiro era arar toda aquela terra. Mãos fortes do Pai e amigos... E a mãe a trazer água fresca... Limonada... Pães com queijo e salame... Para aqueles fortes alimentar... Para o trigo surgir...

                              Os amigos que ajudavam tinham seus nomes... Mas para nós eram “tios”... Com vários nomes... As crianças de terras vizinhas vinham acompanhando seus pais para ajudar no preparo da terra. E logo se soltavam. E as brincadeiras, enquanto homens fortes cuidavam da terra... Eram: de pega-pega – mas nunca um “pega” ruim – sempre era bons e agradáveis e que terminavam em grandes gargalhadas... Esconde-esconde... Deitar-se entre capins altos longe dos lavrados... Chicote queimado... De mocinho e bandido... Era o mais difícil... Ninguém queria ser o bandido.


Quando as mãos fortes descansavam seus corpos, um mate corria de mão em mão, preparado pelas mães que vinham dar apoio... Depois deste tempo o trigo era o silêncio da terra. Nós também nos recolhíamos em brinquedos diferentes em lugares outros, mais calmos. E certa solidão ameaçava a nossa infância. Os grandes olhavam, de soslaio, de longe, aquela imensidão nua e marrom que era a lavoura. Costumavam falar sobre o medo das geadas muito fortes. Ou sobre se as sementes eram fortes o suficiente para brotar naquele solo bruto.

                        Em dias de neblina, ficávamos espiando o trigo nascendo. Pareciam fios de cabelos verdes e retos. Todos muito jutos, a chamar, evocar uma grande “cabeça pensante” sobre o futuro de seus grãos A terra gerava devagar... Nossos pais costumavam nos explicar, fazendo alegorias aos animais... A prenhez de uma vaca... Assim era o solo, e o trigo germinando, rescendo até estar pronto, encachado era o terneirinho no ventre... Gostávamos de imaginar “um terneirinho” saindo do solo... Ah, nobres e inocentes seres que... Perdemos no tempo.

O sol aquecia de longe. Mas o trigal começava a acontecer. E nós acompanhávamos.


                        Ah, de repente o trigo era paisagem. Nós não sabíamos como, por crianças sermos, mas a alegria também se tornava dourada naquele tempo. E riamos... Muito... De casais de namorados que gostava de passear de mãos dadas, tirando fotografias em meio aquele “mar” de trigo. Preferiam fazer poses abraçadas... Juntos... Como o trigo, em meio dele.

Uns esfarelavam todas as flores ou, depois, mastigavam grãos verdes. Outros colhiam sete ramos com suas espigas de sorte para colocarem em vasos, em suas casas... Para a casa e para a vida.                          Ah... E vinha a colheita... Novamente muitos vizinhos que já eram “tios” apareciam. Vinham os tios João, Pedro, José... E as tias também para ajudar mamãe... Tias Célias, Marias, Guilherminas... Ah eram muitos nomes... Eram  muitos tios.

                         E vinha a maquina em cima de uma grande carroça, cheia de roldanas,  ferros e laminas... E nos perdidos... Não mais brincávamos... Apenas víamos “tios” com grandes feixes de trigo sendo carregado por braços fortes e depositar naquela máquina para separar o grão... Ao lado os grãos iam saindo para sacos que esperam para guarda-los todos... Estes após serem fechados... Bem costurados para nenhum grão escapar eram colocados em outras grandes carroças puxadas por três juntas de bois ou burros... Formavam comboios de três ou quatro grandes carroções... Para nós aquilo tudo era gigantesco... Inexplicável. As refeições eram feitos no local... No chão perto do trigo... Das grandes máquinas... Das grandes carroças... E ao seu lado sentavam e comiam fartamente... Com fome também gigante... Mamãe e as tias se esforçavam que tudo fosse gostoso e forte para aqueles braços fortes. Ensopados, batatas e linguiças assadas, grandes pães do outro trigo... Do ano que passou.


                           E todo este barulho de tanta gente não parava... Olhavam para o céu, buscando possíveis nuvens que significariam chuvas...  Aos poucos os feixes de trigos iam sumindo daquilo que antes era um “mar de trigo”. Ai era nossa vez... Junto com outros maiores e as mulheres fazermos acontecer no que ficava na terra cheia de palha do trigo. Era uma brincadeira divertida descobrir espigas esquecida e criar novos feixes... Para levar correndo, tal qual troféu para a colheitadeira.

E sacos e sacos por toda a parte... Nas palhas...  Nas carroças.. Por toda a parte era trigo... Muito trigo. E as brincadeiras depois em grandes galpões eram de pularmos sobre as pilhas de sacos de trigo. Não sabíamos, ainda, e que o nome que davam para toda “aquela montanha de sacos”... Era fartura.

                     Sempre ganhávamos novas roupas e sapatos, brinquedos, lápis de colorir com 12 cores... Fiquei extasiado a primeira vez que vi todas aquelas cores juntas... Nossa poderia desenhar campos de trigos... Enquanto os pais levavam o trigo para a cidade... De negócios nada entendíamos, mas para nós eram os dias de viagem com o trigo. Depois de tudo isso... Víamos farinha chegando... Daquele trigo que levamos... E que nos dariam os pães gigantes que mamãe fazia no forno a lenha, lá no fundo do pátio. Ah, o cheiro destes pães que lembramos até hoje...


                         Enfim o trigo e todo este tempo... Era o pão na mesa. Pão em fornadas. Paes redondos, quadrados, doces e salgados, saindo dos fornos quentes. E como gostávamos dos bonecos e bichinhos com olhos de feijão e recheados com marmelada. Reunidos em família, o sinal da cruz feito, ligeiro, em nome de Deus, que abençoava a mesa e que nela estavam. O trigo era, no final, alimento e milagre. Era crença, fato e fé... Todos juntos! Juntando-nos. Tornando-nos melhores... Ah, lembranças de trigo... De infância... De inocências perdidas.

Pensar não dói... Mas algumas lembranças molham o rosto... E trazem saudades daquilo que não acontecerá mais...

 

 

 

Das lembranças de Infância

Inspirado em Jarbas da Cunha

Entendimentos & Compreensões

Leituras & Pensamentos da Madrugada

Dos arquivos da Sala de Protheus.

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