#HistóriasDaVidaReal:
Realidade de um Cotidiano!
“ O Desamparo implica que
somos nós
mesmos que escolhemos o nosso ser.
Desamparo e angústia caminham juntas...!”
Sartre
Não carecia de explicações.
Foi uma corredeira rumo a Praça onde pudemos contemplar o Baixinho pendurado
pelo pescoço pelas gigantescas mãos não perdoavam jamais. Ângelo era um dos assistidos
pela ONG. Às 12h daquele dia, agarrou o Baixinho pelo pescoço, com uma força
incontrolável. O calor era intenso! Já se via que a língua de seu desafeto
quase não mais continha dentro de sua boca. Nem a PM conseguiu tirar o
Baixinho de tão poderosas mãos do indolor Ângelo. Cheguei mais perto e perguntei
a razão de estar fazendo isto?! – “Meio dia e este vagabundo dormindo de papo
para o ar no banco... Tem que trabalhar. Isto não é hora de dormir. É assim que
se faz com preguiçosos...”. Vociferava e
balançava mais o pescoço do pequeno homem já quase estrebuchado no ar. “Ângelo, por favor, deixe o
Baixinho ir trabalhar...”!
Um grande barulho. Não se
sabia explicar se o Baixinho poderia estar morto por esganadura ou pela
repentina queda. Felizmente não machucou tanto; recuperou os sentindo como um
personagem de desenho animado. Com seus 1,49cm de altura, saiu numa carreira desenfreada
que ninguém mais o encontrou por alguns dias. Esse Baixinho participa de
todas as manifestações pelas ruas, sem saber ler, carregando estandartes sem
saber do que se trata. Procura ser sempre gentil. Quantos anos você tem? –
vinte dois! Os anos passam e continuam com a mesma idade. Como sabe que tem
vinte e dois anos? – Os médicos falam. Ele não sabe que 22 é número do CID de
sua patologia. Fez-me companhia numa Conferência.
Entediado, após o almoço, tirou sapatos e meias, deitou no primeiro banco do
auditório, dormiu assoviando de tanto roncar, atrapalhando o áudio, além de
infestar todo ambiente com o forte chulé. De repente o ruído é quebrado pela
vozeria do Baixinho, desmentindo com deboche: - “Dependente químico nada. É noiado
mesmo”! Agora o ambiente também estava repleto de risos. Mas, voltemos ao Ângelo que
quase me matou de susto quando chegou caladinho, olhou pela janela, disparando
aquele vozeirão, como se fosse uma metralhadora quase estourando meus tímpanos:
- “Bom dia princesa rainha, trouxe estas lindas pulseiras coloridas que tomei
de uma meretriz para você e este livro que achei dentro de uma livraria para o
diretor. Estou acabando de escrever uma dedicatória...”.
Assistente "princesa rainha"
Claro, pagamos o livro que não
compramos através do assistido, que sabe o nome de todos os presidentes da
República, datas históricas e se considera um autodidata. Lê os jornais que “leva”
das bancas de revistas e os demais, também devem ler, mesmo sem conhecer pelo
menos as vogais. Desenha muito bem, faz as oficinas. Banho frio nem pensar! Numa manhã não tivemos como
cobrir os prejuízos de seus treinos como lutador de Box. Destruiu todas as
cabines telefônicas do Bairro; portas de caminhões baús, as vitrinas de uma loja
e por pouco, não podou as árvores da Praça, de onde ele punha a correr todas as
mulheres que por acaso assentasse num banco e religiosamente as batizava com o
nome de meretriz. A Polícia corria atrás e
ninguém conseguia segurar aquela imensa figura, de quase 1,90cm de altura, por
vezes inteligentíssimo, comportado em outras muito agressivo em palavras e
fisicamente, derrubando o que tinha à sua frente, como se fosse um gigante
irrefreável.
Os Anjos da ONG
Acuado gritou para a psicóloga
não deixar “gerar B.O”. Ela prometeu que isto não aconteceria. Obediente e se
sentindo seguro, Ângelo deixou-se ser algemado e caminhamos para a clínica
psiquiátrica, que quando medicado de mais um surto, sem o efeito desejado, mais
uma vez cantou todo o Hino Nacional, Hino da Bandeira, das Forças Armadas e
além das continências à Bandeira ordenando aos policiais: - Atenção Pelotão!
Sentiiiido! Descansar! Começamos a encontrar seu
histórico de vida. Um amigo seu foi encontrado pelas redes sociais, depois de
muita procura. Trabalhou no bar do amigo após servir o Exército, era lutador
amador de Box, fazia academia regularmente, nadava muito bem e estava como
garçom do navio Bateau Mouche (1988)... Conta-se que conseguiu se jogar nas águas
frias do mar, nadar até ser socorrido. Agora sabíamos seus dados pessoais, de
onde viera; que separou de sua esposa; sua irmã era casada e ele tinha três
sobrinhos.
Afirma que seu pai foi
trabalhar e nunca mais voltou para casa. Cansada de esperá-lo, a mãe deixou os
dois filhos em casa e saiu para procurá-lo, sem também nunca mais voltar. A
irmã e ele foram criados por parentes em casas separadas de uma populosa favela
do Rio de Janeiro. Um dia Ângelo resolveu sair e procurar a sua mãe ao redor do
mundo.
Foram oito dias de certa
tranquilidade, ou seja, sem sobressaltos na ONG. Até que numa manhã Ângelo
chegou lá com uma tiara infantil, cor de rosa pegando da testa ao alto da
cabeça, um óculos escuro feminino muito colorido sem uma das lentes, roupas sujas,
bermuda jeans com uma perna comprida e o outro curta. Ele não tomava banho frio
de jeito nenhum. Ficou muito tempo fazendo pirraça no portão.
Passa uma viatura policial. Muito
interessado à ausência permanente de Ângelo, Baixinho sussurrou maldosamente ao
seu ouvido que poderia “gerar B.O.” Até hoje não sabemos como
Ângelo conseguiu voltar para o Rio de Janeiro em busca de suas origens.
Das Vivências, Cotidiano &
Humanismo de
Marilene Marques, Contabilista,
Mineira da
Vila de Assaraí, Pocrane – MG
Trabalhando com Voluntariado
Social de
População em Situação de Rua,
Crianças/Adolescentes de Risco
Região do Vale Aço, a Leste de
Minas Gerais.
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