#HistoriasVividas:
"Aninha Quer Falar Sobre o Céu...!"
"...A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...!"
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...!"
Mario Quintana
“Vovó,
você sabe que a mulher do vovô bateu as botas?”, pergunta a bonita menina de
nove anos, abrindo tanto os olhos amendoados que consigo ver o medo bem no
fundo de sua íris castanha dourada. O medo da perda, que ela tenta disfarçar
com a expressão engraçada que acabou de usar para me receber em sua casa.
Não
acerta uma quando se trata de falar em morte, essa minha neta. Há alguns anos,
vendo um bonito anel no dedo da outra avó, Aninha, então com uns seis ou sete
anos, disparou:
“Vovó, seu anel é lindo! Quando você morrer posso ficar com ele?”. “Não, Ana.
Esse anel é da sua tia, minha única filha, e você não deve dizer essas coisas.
É muito rude pedir para as pessoas deixarem coisas para você, depois que elas
morrerem.” A garota, matutou, coçou a cabeça e tentou de novo: “Vovó, então
quando você falecer eu posso ficar com ele?”.
Agora
a criança parece pensar estar em apuros. Como se não soubesse bem o que dizer.
Não posso culpá-la; dizer “morrer” é muito rude, você arrisca um “falecer” e
todo mundo ri da sua cara, tenta “bater as botas” e sua avó, habitualmente
relaxada, levanta as sobrancelhas até a raiz dos cabelos. Deve haver algum
problema grande com a morte...
Pergunto
se quer conversar sobre o que aconteceu e a resposta é ambígua; ela diz que
está triste pelo avô e pela morte da “tia” a quem conheceu pouco - o casamento
era recente e só se encontraram duas vezes - mas tem medo de falar no assunto.
Parece que, mais do que a ausência da mulher do avô, o que assusta a pequena é
a morte em si.
Quero
saber o que ela acha que acontece quando as pessoas morrem e, depois de muito
franzir de testa e de algumas enroladas no cabelo já cacheado, Ana diz acreditar
que a morte não é o fim, que os mortos retornam em outros corpos.
Aproveito o gancho e digo que, para mim, as encarnações são como anos de
escola. Quem morreu chega “lá em cima”, onde quer que isso fique, e começa a
relembrar: “Bom, nessa vida eu fui muito inteligente, estudiosa, carinhosa,
trabalhadora, mas também era meio preguiçosa, um pouco ciumenta, não gostava de
tomar banho...”...”Você está falando de mim?”, interrompe Aninha, me olhando
feio e fazendo com que perca completamente o fio da meada. “Ah? Como? Não, por
quê? Você não gosta de tomar banho?”, devolvo na lata. Restabelecido o silêncio
– sepulcral – tento lembrar-me de onde parei.
“Tomar banho, vovó”, ajuda a garota, solícita. Continuo dali, explicando que
acho que na vida seguinte, aquela alma vai tentar melhorar os pontos em que
achou que não era tão boa na encarnação que acabou de deixar. Exatamente como
nos anos de escola, em que a gente estuda sempre um pouco mais, aprende mais a
cada série.
Depois
de planejar sua próxima vida – prossigo - elas podem descansar estudar o que
quiserem encontrar os parentes que morreram antes, dormir ou ficar de pernas
para o ar, sem fazer nada, só preguiçando.
“Não é nada disso, vovó, está tudo errado. Quando as pessoas morrem elas vão
para o céu e recebem senhas. Aí elas vão para o recreio, estão de férias. Não
têm casas. Só quem tem casa no céu são os anjos e as pessoas que estão lá para
ajudar. Os outros brincam, ficam em hotéis, fazem o que quiserem e só não podem
perder as senhas, porque na hora em que o novo corpo deles fica pronto é pela
senha que são chamados”, termina ela, olhando para mim com cara de quem sabe de
tudo, desde que nasceu.
Fico
olhando aquela menina sensível e acho a teoria dela tão boa ou melhor que a
minha, e me dá uma vontade danada de perguntar se a gente ganha uma bolsinha de
pendurar no pescoço para guardar a senha, e se posso escolher a cor da minha ou
se ela acha que vão me empurrar a que estiver à mão.
Abraço
Aninha, digo que acho que ela está certíssima, encho sua cabeça anelada de
beijos e, alteando um pouco a voz, pergunto a Clara, na sala ao lado, se quer
dizer ou questionar alguma coisa. “Não, vovó, estou bem”, vem à resposta de
quem acompanhou todo o papo atentamente.
No
dia seguinte minha filha, ainda no aeroporto, telefona chorando para avisar que
uma tia-avó muito querida morreu de madrugada. Essa perda é de uma pessoa muito
próxima e aconteceu perto demais da primeira. Mais uma vez vou ficar com as
crianças, agora em maior número.
Ah, as avós...
Das Experiências Sensíveis
De Beatriz Ramos
Cronista – Brasília – DF -
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