segunda-feira, 4 de maio de 2015


#HistoriasVividas:


 "Aninha Quer Falar Sobre o Céu...!"

   "...A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...!"


Mario Quintana


                                           “Vovó, você sabe que a mulher do vovô bateu as botas?”, pergunta a bonita menina de nove anos, abrindo tanto os olhos amendoados que consigo ver o medo bem no fundo de sua íris castanha dourada. O medo da perda, que ela tenta disfarçar com a expressão engraçada que acabou de usar para me receber em sua casa.
                                       Não acerta uma quando se trata de falar em morte, essa minha neta. Há alguns anos, vendo um bonito anel no dedo da outra avó, Aninha, então com uns seis ou sete anos, disparou:
                                       “Vovó, seu anel é lindo! Quando você morrer posso ficar com ele?”. “Não, Ana. Esse anel é da sua tia, minha única filha, e você não deve dizer essas coisas. É muito rude pedir para as pessoas deixarem coisas para você, depois que elas morrerem.” A garota, matutou, coçou a cabeça e tentou de novo: “Vovó, então quando você falecer eu posso ficar com ele?”.


                                       Agora a criança parece pensar estar em apuros. Como se não soubesse bem o que dizer. Não posso culpá-la; dizer “morrer” é muito rude, você arrisca um “falecer” e todo mundo ri da sua cara, tenta “bater as botas” e sua avó, habitualmente relaxada, levanta as sobrancelhas até a raiz dos cabelos. Deve haver algum problema grande com a morte...
                                      Pergunto se quer conversar sobre o que aconteceu e a resposta é ambígua; ela diz que está triste pelo avô e pela morte da “tia” a quem conheceu pouco - o casamento era recente e só se encontraram duas vezes - mas tem medo de falar no assunto. Parece que, mais do que a ausência da mulher do avô, o que assusta a pequena é a morte em si.

                                       Quero saber o que ela acha que acontece quando as pessoas morrem e, depois de muito franzir de testa e de algumas enroladas no cabelo já cacheado, Ana diz acreditar que a morte não é o fim, que os mortos retornam em outros corpos.
                                        Aproveito o gancho e digo que, para mim, as encarnações são como anos de escola. Quem morreu chega “lá em cima”, onde quer que isso fique, e começa a relembrar: “Bom, nessa vida eu fui muito inteligente, estudiosa, carinhosa, trabalhadora, mas também era meio preguiçosa, um pouco ciumenta, não gostava de tomar banho...”...”Você está falando de mim?”, interrompe Aninha, me olhando feio e fazendo com que perca completamente o fio da meada. “Ah? Como? Não, por quê? Você não gosta de tomar banho?”, devolvo na lata. Restabelecido o silêncio – sepulcral – tento lembrar-me de onde parei.


                                        “Tomar banho, vovó”, ajuda a garota, solícita. Continuo dali, explicando que acho que na vida seguinte, aquela alma vai tentar melhorar os pontos em que achou que não era tão boa na encarnação que acabou de deixar. Exatamente como nos anos de escola, em que a gente estuda sempre um pouco mais, aprende mais a cada série.
                                            Depois de planejar sua próxima vida – prossigo - elas podem descansar estudar o que quiserem encontrar os parentes que morreram antes, dormir ou ficar de pernas para o ar, sem fazer nada, só preguiçando.
                                        “Não é nada disso, vovó, está tudo errado. Quando as pessoas morrem elas vão para o céu e recebem senhas. Aí elas vão para o recreio, estão de férias. Não têm casas. Só quem tem casa no céu são os anjos e as pessoas que estão lá para ajudar. Os outros brincam, ficam em hotéis, fazem o que quiserem e só não podem perder as senhas, porque na hora em que o novo corpo deles fica pronto é pela senha que são chamados”, termina ela, olhando para mim com cara de quem sabe de tudo, desde que nasceu.

                                          Fico olhando aquela menina sensível e acho a teoria dela tão boa ou melhor que a minha, e me dá uma vontade danada de perguntar se a gente ganha uma bolsinha de pendurar no pescoço para guardar a senha, e se posso escolher a cor da minha ou se ela acha que vão me empurrar a que estiver à mão.
                                           Abraço Aninha, digo que acho que ela está certíssima, encho sua cabeça anelada de beijos e, alteando um pouco a voz, pergunto a Clara, na sala ao lado, se quer dizer ou questionar alguma coisa. “Não, vovó, estou bem”, vem à resposta de quem acompanhou todo o papo atentamente.

                                          No dia seguinte minha filha, ainda no aeroporto, telefona chorando para avisar que uma tia-avó muito querida morreu de madrugada. Essa perda é de uma pessoa muito próxima e aconteceu perto demais da primeira. Mais uma vez vou ficar com as crianças, agora em maior número.
                                        Estou preparada, escolhi uma comédia de censura livre que fala sobre vida após a morte de maneira delicada, vou fazer toneladas de brigadeiro de colher e me abrir para as perguntas. Sendo crianças da sociedade asséptica em que vivemos que nega a morte e o envelhecer como se não fizessem parte da vida, tenho certeza de que serão muitas.
 Ah, as avós...

 
Das Experiências Sensíveis
De Beatriz Ramos
Cronista – Brasília – DF - 

 

 

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