#CenasDoCotidiano:
“A porta da gaiola
sempre esteve aberta...!”
“...O
primeiro sinal de uma separação
iminente
é quando um faz piada e outro
não ri,
emburra. Casais felizes riem
até de
coisas sem graça...!”
T. Nunes
Era
um casal como qualquer outro, um dos milhares de casais que se formam mais por
desesperança que por amor. Por cansaço ou medo de vagar sozinhos pela
vida.
Ambos
carregavam filhos de relações anteriores, amores perdidos, casamentos
desfeitos, amarguras e frustrações. “Quem sabe dessa vez dá certo?”, devem ter
se perguntado, enquanto sorriam um para o outro, fazendo de conta que estava
tudo bem e que um sonho lindo estava começando.
Ela
adora ler, ele mal abre um livro; ele ama futebol, ela chama bandeirinha de
“flanelinha”; ela é espiritualista, ele, ateu. Ele é governo, ela, oposição.
São tão diferentes que apenas a vontade de driblar a solidão pode explicar
terem, algum dia, estado juntos.
Mudaram
de cidade em busca de um campo neutro, tiveram filhos, mas os sinais estavam
lá. Ele tinha amigos que ela não conhecia, um mundo à parte, que não
compartilhava e que ela também não se interessava em conhecer. Passava
meses fora a trabalho.
Ela,
por sua vez, jamais o levou a casa onde passou a adolescência ou o apresentou à
moradora, a tia que considerava uma segunda mãe. Nunca lhe disse sequer o
endereço ou telefone de seu refúgio mais seguro. Não era da conta dele, era seu
plano B, seu lugar onde ninguém a encontraria.
Seguiram
assim, em solidão compartilhada, dividindo silêncios, desencontros e alguma
felicidade, porque mesmo em meio à miséria humana é possível, algumas vezes,
encontrar algumas migalhas. Resiliência.
Na
primeira gravidez invadiram o terreno da casa enquanto o marido estava viajando
e ela não sabia o número do telefone ou o endereço em São Paulo para avisar, e
tudo bem. Achou estranho ele sair da cidade sem um contato para emergência, mas
chamou a polícia, ignorou os sinais, foi em frente.
Quando
a mãe dela morreu ele não foi ao enterro, deixou que viajasse sozinha para
enfrentar o processo do luto. Na missa de sétimo dia um ex-namorado apareceu e
ficou ao seu lado até o final da cerimônia. Na fila da saída, as pessoas davam
os pêsames a ele, achando ser o marido ausente. Dessa vez minha querida
distraída viu o sinal, começou a pensar, mas foi em frente.
Minha
amiga descobriu primeiro. As mulheres sempre caem em si antes que os homens o
façam. Em uma mesa de bar, olhando para o lago com ar espantado, diz que até
hoje não consegue entender por que os homens fogem tanto do casamento e
esperneiam ainda mais para não sair dele.
Ela
deve saber, passou por isso. Tentou se separar meses depois que o caçula
nasceu, o marido não aceitou, entrou em depressão, disse que as coisas iam
mudar, o pacote completo. Ela ficou e passou os dez anos seguintes esperando
que as coisas mudassem, que tudo melhorasse, que as migalhas de felicidade
voltassem a cair em seu caminho vezes suficientes a ponto de justificar aquela vida.
Pergunto
se não teria sido melhor sair antes. Ela me olha, com um sorriso torto, e diz
que o marido dizia que não conseguiria viver sem sua companhia e que ficou anos
esperando que estivesse bem, ou se apaixonasse por outra, para poder
partir.
Claro
que ele jamais se estabilizou o suficiente e a relação foi se deteriorando a
ponto de não se falarem mais, ela me conta, relembrando um fim de semana em que
a única frase que ouviu do marido foi às três da tarde do domingo: “Estou com
fome!”.
Rimos
juntas do episódio e ela, voltando a ficar séria, diz que teve certeza de estar
na hora de separar quando, estreando uma roupa nova, foi jantar com ele em um
restaurante badalado e todos os homens a olharam, menos ele. “Depois passamos a
noite inteira jantando em silêncio, sem trocar uma palavra e sem olhar um para
o outro. Como aqueles casais de velhinhos, sabe? Tudo o que prometi que nunca
aconteceria comigo”.
Depois
disso quem se apaixonou por outro foi ela e terminou um casamento de dezoito
anos que, a não ser pelos filhos, jamais deveria ter começado. Minha amiga saiu
tão culpada da separação que concordou com tudo, deixou que ele levasse o que
quisesse, pendurou os quadros no novo apartamento do ex, assistiu calada
enquanto o “abandonado” posava de vítima para os filhos, foi a vilã.
O
ex-marido passou seis meses chorando as mágoas, jurando que nunca mais se
casaria, gritando ao mundo que tinha sido posto para fora de casa com a roupa
do corpo e que só não se matava por causa dos filhos. Indo ao trabalho dela vigiar
seus passos. Depois disso recuperou-se milagrosamente e começou a namorar, em
um ano estava novo.
Em
menos de dois anos casou, dez anos depois se separou e casou com uma
ex-namorada da juventude. A última notícia que ela teve dele é que o ex jura de
pés juntos que sempre foi apaixonado pela atual mulher e que só passou vinte e
oito anos separado dela porque os casamentos anteriores, todos grandes erros, o
impediram!
Brindamos
aos desencontros e pergunto a ela como se sente. “Frustrada. Passei dez anos
tentando sair de um casamento que sempre esteve falido. Por má avaliação e
falta de comunicação ficamos presos um ao outro. Eu, com medo de feri-lo, ele,
para não abandonar uma mulher com filhos pequenos. Quanto sofrimento poderíamos
ter evitado, tivéssemos apenas sido honestos, conosco, com nossos sentimentos”.
Olho
para ela sem saber o que dizer. É difícil, para mim, aceitar que minha amiga
tenha protelado por dez anos uma ruptura para preservar um homem que,
claramente, a levava muito pouco em conta. A razão do tempo perdido parece ter
a ver com sua autoestima e pode ser tão dolorosa que ela não está pronta para
perceber isso. Estarei aqui para abraçá-la, quando a ficha cair e o dia chegar.
Das vivências & percepções
De Beatriz Ramos – Cronista –
Brasília – DF -
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