O Medo e Suas Assombrações!
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“... A maior prisão
em que as pessoas vivem,
é o medo do que as
outras pessoas pensam...!”
David Icke
O medo nos deixa impotente pela consciência certeira do
perigo. O medo é tanto que até nos faz ter essa consciência, por vezes
irracional, temerosa, medonha. Cara de receio, de desconfiança, de enxergar o
que não se vê. Histeria que não se acha nem nosso pulso. Recalque
inconscientemente traduzido em sintomas corporais que se exprime por
manifestações de ordem corporal, sem que haja qualquer problema orgânico
funcional. Medo que passa do campo da consciência para o do inconsciente, ao
entrar em choque com exigências contrárias.
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Vivemos constantes medos. Somos medrosos e
amedrontamos. Se assim não fôssemos, não ouviríamos que devemos ser fortes,
corajosos. Sentimos medos que fazem nossos olhos segregarem minúsculas gotas de
água que descem pela face. Medo até da sombra.
Tinha muito medo das “histórias” assombrosas que ouvia. E numa manhã minha professora
chamou nossa mãe até a cerca de braúna que dividia as propriedades. Seus olhos
faiscavam suspense.
Contou que seu marido chegou mais tarde
da roça e viu um “Vulto” branco,
sumindo por trás da sala de aula, no fundo do quintal. A coisa era de arrepiar todos
os fios de cabelo da cabeça e do corpo e não mais conseguir dormir em paz. O
pequeno povoado entrou em pânico. A notícia alastrou. Ninguém explicava coisa com
coisa sobre e como era o tal Vulto, senão que estava de branco. Tenebroso dia!
O Vulto não saía da minha mente. Não conhecia este novo
ser horripilante nem seu formato. O medo aumentando. Uma folha que caía da
mangueira era motivo de encolhimento dos músculos, dos olhos e ouvidos atentos.
Ao anoitecer, pus-me a matutar se deveria gritar correr ou jogar um porrete no
Vulto, caso aparecesse. Hora de dormir e as dezenas de imagens do Vulto contraíam
meu corpo de criança de forma pavorosa. O Vulto poderia ser uma espécie de
bicho papão, uma fera do além, um dragão soltando labaredas de fogo, uma alma
penada ou quem sabe a própria mula sem
cabeça coberta por um lençol branco.
Não sei se dormi ou se perdi os sentidos.
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O Vulto continuava ali. Todos os dias eu olhava para o
local em que supostamente o Vulto passou na tentativa de descobrir se ele saíra
de debaixo do assoalho, se da estrada, mata ou apareceu igual fantasma. Precisava
saber como era o Vulto, assim como,
em qualquer lugar já identificava uma mula sem cabeça, que é claro, era uma mula que não tinha cabeça, que andava a
cavalgar pelas estradas, ruelas, em volta da casa. Conhecia até o seu trotar
noturno, perdida na escuridão, principalmente durante a quaresma. Sabia com
detalhes sobre o ranger de dentes dos
porcos, debaixo da escada, que apareceram para o compadre Chico. Eram bem
gordinhos. Misteriosamente, na manhã seguinte estava tudo normal debaixo
daquela escada da varanda.
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Do lobisomem não tinha muito medo porque ainda era
criança. O conheceria a léguas de distância. Com suas garras e grandes dentes,
rasgava, puxava a roupa das moças. No dia seguinte algum homem dormiria até
tarde e seus dentes estariam cheios de fios e pedaços de tecidos. Almas penadas
era coisa séria. Não se brinca com isto.
Dia de Finados, fui também ao cemitério. Que cheiro
gostoso de velas queimadas, aquelas borras escorriam formando verdadeiras obras
de arte. As chamas entrelaçavam-se, ora de maneira esguia, ora arredondadas,
com uma ponta fina. Olhava uma e outra, até que não me contive e comecei a
juntar várias borras ainda quentinhas e com elas formar bichinhos, bolas,
bonecas.
Ao final da tarde soube que as borras pertenciam às almas.
Teria que devolver onde peguei, senão viriam buscar a noite. Meu Deus,
misericórdia, “mianossinhora”... Fui subindo
pelo caminho e um imenso medo invadiu meu ser, meu corpo tremia, chorava
compulsivamente. Não sabia mais onde tinha pegado as borras nem como
devolvê-las a cada alma. Desespero!
Pensei no padre passando para a igreja com aquela
batina, estola roxa ou verdona bem
forte, esvoaçante. A sua batina e o tal Latim trituravam meu pensamento. Lembrei-me
das urnas fúnebres eram cobertas por tecidos, normalmente de cetim roxo; rosa,
azul, branca para quem podia comprar e de outros mais baratos. Imagem que me
matava de medo. A tarde terminava e eu
não tinha ainda devolvido tudo. Para meu alívio “e que nunca mais fizesse isso”, minha irmã rezou e coloquei as
borras no cruzeiro central do cemitério.
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Voltando para casa lembrei-me do Vulto. Sim, o Vulto
voltou. Aquele pavoroso ser, que poderia aparecer em qualquer lugar, com cara de dragão, língua de fogo, misturado
com a cabeça da mula, os dentes do lobisomem, a batina esvoaçante, os porcos
debaixo da escada, a porteira que abria sozinha. O andar com esporas pelo
assoalho da sala, o chicote assoviando no ar... Só podia ser o Vulto, com seu
rosto, face, semblante sempre à espreita e aparência de pouca nitidez.
Chegando ao
portão de nossa casa, aliviada das almas, perguntei como era o Vulto, que sorrindo,
respondeu minha irmã: “Olha no dicionário”.
Não é possível que o tinhoso esteja até no dicionário! Pois
está até hoje, não só lá como em cada esquina, ruas, estradas, jardins,
palacetes, salões de festas, salas de reuniões, gabinetes, Poderes Legislativo,
Judiciário e Executivo e à surdina, sempre como um metal pontiagudo em nosso
peito, entrando sem pedir licença, nos desestruturando a cada sentença, Decreto,
Medida Provisória, Novas Leis, Deveres e deixando uma epidemia tetânica.
Das Percepções & Sentimentos
De Marilene Marques
Aposentada, Trabalhando com Voluntariado Social.
Região do Vale do Aço – Leste de Minas Gerais.
Obs.: Todas as obras publicadas na Sala de
Protheus são de inteira responsabilidade de seus autores.
O
Editor!
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