#CenasDaVidaReal:
A
Visita de Manfredo!
Meu nome é Clara,
tenho onze anos e uma avó de quem gosto muito. Na verdade, gosto muito das
minhas duas avós, mas é sobre uma delas que quero falar hoje.
Essa minha avó mora
do outro lado da cidade e trabalha demais. De vez em quando passamos quase um
mês longe uma da outra e sinto saudades. O nome dela é Beatriz, mas eu a
apelidei de Bibia quando comecei a
falar e minhas irmãs mais novas, Ana e Sofia, também pegaram o costume. Ela é
engraçada, tem 57 anos; acredita em reencarnação, fadas, duendes e tem três
cachorros: Bia, uma labrador preta; Pingo, um lhasa apso
velhinho e Morgana, uma schnauzer quase branca que só falta
falar.
Ela mora em uma casa
azul cheia de livros e quando durmo lá, adoro ficar deitada do lado dela, cada
uma lendo a sua história preferida, bem quietinha, felizes só por estarmos
juntas. Minha avó faz tudo o que eu e minha irmã queremos, acho que é porque
gosta muito de nós.
Vovó tem olhos
verdes e não enxerga nada sem óculos que vive tirando, tem cabelos claros
grisalhos que não pinta há anos e é meio gorducha, mas você não pode dizer isso
de jeito nenhum, senão ela ameaça transformar você em uma sapa pestanuda ou em
uma barata cascuda. Vovó Bibia adora
brincar de bruxa e de vez em quando acontecem umas coisas com ela que me deixam
meio cismada, como essa visita que apareceu sem avisar...
Em uma segunda-feira
tranquila, vovó chegou em casa mais cedo do trabalho, muito alegre.
Ainda no andar de
baixo, vovó foi ao altar e acendeu uma vela de sete cores – uma para cada dia da semana – um incenso de alecrim e agradeceu
pelo dia tranquilo. “Graças a Deus por um
dia em que ninguém pisou no meu pé, nem puxou o meu cabelo ou o meu tapete, nem
me olhou torto”, suspirou satisfeita.
Vovó deu comida para
Bia, Pingo e Morgana e subiu, para
agradecer no altar de cima. Minha avó tem dois altares! Sim! Por quê? Como
garantia, eu acho. São lindos, em minha opinião. Ela tem imagens de Jesus; Shiva; Nossa Senhora; Arcanjo Miguel;
Ganesha; Buda; Durga e muitos outros que ela me disse quem são, mas não
consegui decorar.
Tem gente que diz
que ela fez uma confusão danada; misturou tudo, mas vovó responde que Deus está
em todas as religiões e que os altares são dela e ninguém tem nada a ver com
isso. De vez em quando minha avó é meio esquentada...
Vovó chegou em seu
quarto, tirou os óculos e foi agradecer no altar. Escolheu uma vela amarela,
sua cor favorita, e foi pegar um incenso de alecrim no cesto ao lado, quando
viu o que, no escuro, pareceu um paninho largado em cima das caixas. Pegou por
uma das pontinhas e, como achou que poderia estar empoeirado, deu uma boa
sacudida para dobrar depois.
Foi aí que, mesmo
sem óculos, vovó percebeu que o “pano” estava
olhando para ela com dois olhinhos zangados meio zonzo! Soltou com cuidado os
olhinhos no cesto, voltou correndo para o quarto, pegou os óculos e uma toalha
lilás, e voltou para o santuário/varanda,
para descobrir que tinha chacoalhado um morceguinho do tamanho de seu punho – vovó tem punhos pequenos -, que ainda
estava meio tonto e indignado.
Vovó acha que todo
mundo deve ter um nome e decidiu que o morceguinho tinha cara de Manfredo. Resolvido o problema, ela
ficou meio embatucada, sem saber o que fazer com ele, já que era noite escura e
ela não é nada corajosa. Meus tios Pedro e Tony, que moravam com minha avó até
há pouco tempo, eram os salvadores oficiais de morceguinhos, esse era o
primeiro “só dela”. Mas vovó sabia
que, se não voasse, Manfredo morreria e não podia deixar isso acontecer.
Bom, vamos lá,
Manfredo, disse vovó, desculpe
o mau jeito. Isso é para você aprender a não entrar na casa dos outros sem ser
chamado. É um perigo aparecer assim. Já imaginou se tenho um gato? Você poderia
ter virado jantar. Continua
ela, enquanto joga a toalha lilás em cima do cesto e desce as escadas com
cuidado.
Srrrcccc,
srrrcccc, srrrccccc.... responde
Manfredo, tentando escapar do cesto.
Escute bem,
rapazinho - continua
vovó, que parece achar natural conversar com morceguinhos – Se fosse na casa da minha filha,
Fabiana, acha que alguém iria lá fora, lhe ajudar a voar? Nananinanão. A essa
hora ela já tinha ligado para uma tal de Zoonoses e teriam mandado na hora um
Homem do Saco para...Bom...Acho que você não precisa saber de tudo.
Vovó pousou a cesta
na lavanderia enquanto decidia não contar que na Zoonose sacrificam
morceguinhos e ia pé ante pé acender
a luz e abrir a porta da área de serviço quando ouviu:
Scooooorrrrc,
scooooorrrrc, scooooorrrrc....
“Scooooorrrrc”? Essa é nova – pensou vovó – que voltou a
tempo de ver Manfredo, com meio corpo para fora da cesta, a pontinha da língua
aparecendo do lado da boca, fazendo um esforço enorme para escapar.
Nada disso,
mocinho, disse
vovó, agarrando Manfredo com a toalha lilás com cuidado para não esmagar o
bichinho, você
vai viver uma grande aventura. Vai aprender a voltar para sua casa.
E lá se foi vovó, em
direção ao muro que fica atrás da lavanderia, conversando animadamente com
Manfredo que, enrolado na toalha lilás, só com a cabeça de fora, a olhava
interessado.
Você está vendo
esse muro? É tudo muito simples; morceguinhos só conseguem voar de certa
altura. Vou coloca-lo no muro e fico aqui, olhando, tomando conta. Quando você
achar que já subiu o bastante é só abrir as asas e ir direto para casa,
entendeu bem? Nada de entrar em outra sem avisar!!!
Como Manfredo
continuou calado, olhando firme para vovó, ela achou que ele, além de
bonitinho, era um morceguinho muito sabido, e o colocou com cuidado no muro,
onde ele ficou durante um tempo, até começar a subir devagar. De repente parou,
olhando para ela meio de lado.
Vovó Bibia não se fez de rogada: estendeu a
toalha de rosto lilás como se fosse uma daquelas redes de segurança de
bombeiros e começou a gritar:
Vai, Manfredo,
você consegue... Um pé depois do outro! Isso, rapazinho, força, coragem. Bom
morceguinho!
E lá se foi
Manfredo, devagar, um “pé” depois do
outro, enquanto minha avó pulava que nem louca, de camisola, agitando a toalha
lilás e gritando palavras de incentivo. Até que... Bom, vou deixar ela contar:
Eu estava
pensando que ele ia chegar até em cima do muro, diz vovó, imaginei o Manfredo naquela posição
do Rocky, dando socos no ar. Estava até me preparando para comemorar, cantando
a música com ele... De repente ele olhou para mim uma última vez e... Zoom foi
embora e nunca mais apareceu!
Vovó e eu planejamos
colocar uma placa no muro dizendo: “Morcegódromo
do Manfredo”, para que morceguinhos desgarrados saibam que ali é uma zona
de decolagem segura. Por essas e outras é que eu adoro minha avó Bibia....
Das Histórias da Vida Real
Beatriz Ramos
Jornalista & Cronista
Brasília - DF
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