Reinventando o Humano!
“...A
melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma
coisa que não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode
ser feito. Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer
hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje
também não pude fazer...!“.
Paulo Freire
Desatai o futuro, bradou furioso,
o russo e poeta universal Maiakóvski. Poderíamos acrescentar, presunçosamente,
um - preservai o passado! -, como forma
de dar sustentação sólida a esse futuro em invenção constante.
Mas, o que preservar do passado?
Nem tudo, é claro; afinal, o passado não é nem o lugar do imutável (pois depende de como o continuamos),
nem um mero depositário temporal do, agora, inútil. É preciso, antes de
qualquer coisa, quando pensamos em passado, fazer uma distinção entre o
tradicional e o arcaico. O tradicional é o que deve ser protegido, guardado,
levado adiante; é a tradição, uma espécie de promontório, a partir do qual o futuro
pode ser vislumbrado naquilo que carrega de mais próximo à qualidade positiva.
Já o arcaico, por sua vez, é o que deve ser descartado, por ter-se provado
insuficiente, precário, anacrônico.
Para pensarmos um pouco sobre
essa relação entre passado, presente e futuro, vale à pena recontar uma
historinha (infelizmente) real.
Em meados dos anos 70, dois
caciques da nação xavante foram de avião, visitar a cidade de São Paulo; a
visão aérea noturna de uma megalópole (com
sua “floresta” de prédios”) os impressionou sobremaneira (tal como, para nós, é inesquecível e
confusa a paisagem amazônica). Foram dormir em um hotel e, no dia seguinte,
levados para passear.
Aonde levá-los, senão para ver o
diferente, o exótico, o inédito? Andaram no metrô (recém-inaugurado), caminharam pela Av. Paulista (com suas catedrais financeiras altíssimas),
visitaram um shopping center (só
havia 2 naquele tempo) e, por fim, foram conhecer um dos prédios históricos
paulistanos na região central que abriga um imenso mercado municipal (entreposto de frutas, legumes e cereais).
A ida ao mercado tinha a
finalidade de surpreendê-los com um cenário paradisíaco: alimentos acumulados
em grande quantidade. Como, naquela época, eles quase não usassem o dinheiro
como mediação para qualidade de vida, o alimento farto representava uma riqueza
incomensurável. Entraram, deram dois passos no interior do prédio e,
subitamente, estancaram boquiabertos com o cenário: pilhas e pilhas de alface,
de cenoura, de tomate, de laranja... Começaram a andar por entre as pilhas e
caixas, em meio aquele ruído de vozes, folhas e frutos esmagados e caídos no
piso, um movimento incessante.
De repente, um deles viu algo que
nenhum e nenhuma de nós teriam visto, pois não chamaria nossa atenção. Ele apontou
e disse:
O que ele está fazendo? “Ele” era
um menino de uns 10 anos de idade, negro, pobre (nós o saberíamos, pelas vestimentas), que no chão catava verduras
e frutas amassadas, estragadas e sujas, e as colocava em um saquinho plástico.
A resposta foi a “óbvia”: Ele está pegando comida.
O cacique continuou passeando,
calado (provavelmente tentando
compreender a resposta dada); depois de uns 10 minutos voltaram à carga:
Não entendi. Por que o menino
está pegando aquela comida podre se tem tanta coisa boa nas pilhas e caixas?
Outra resposta evidente: Porque
para pegar nas pilhas precisa ter dinheiro. Insiste o xavante (já irritante, pois está escavando onde a
injustiça sangra): E por que ele não tem dinheiro?
Réplica enfadonha do civilizado:
Porque ele é criança!
Torna o índio: E o pai dele? Tem
dinheiro?
Outra obviedade: Não, não tem.
Questão final: Então, não entendi
de novo. Por que você que é grande tem dinheiro e o pai do menino, que também é
não tem?
A única saída possível foi
responder: Porque aqui é assim!
Os índios pediram para ir embora,
não apenas do mercado, mas da cidade.
Não tiveram uma revolta ética,
mas cultural; não captaram um dos modos de organização de nossa cultura. Não
conseguiram compreender essa situação tão “normal”:
se uma criança tem fome e não tem dinheiro, come comida estragada. Para que
pudessem aceitar mais tranquilamente o “porque
aqui é assim” teriam que ter sido formados e formadores da nossa sociedade,
frequentado nossas instituições sociais; teriam que ter sido “civilizado”.
A intenção do relato acima não é
moralista e nem deseja propor um “modelo
indígena de existência”; é ressaltar aquela que é nossa maior tarefa: o
esforço de destruição do “porque aqui é
assim”.
A ruptura do “porque aqui é assim” principia pela recusa à ditadura dos fatos
consumados e à ditadura fatalista de um presente que aparenta serem invencíveis
tamanhos são os obstáculos cotidianos com os quais nos deparamos.
É preciso ter a audácia de
reinventar, em conjunto, o humano, e, com ele, uma ética da rebeldia, uma ética
que reafirme nossa possibilidade de dizer não e que valorize a inconformidade.
Não é mero acaso que a primeira
palavra, de fato, que um ser humano aprende a dizer e a entender é o não.
Seja oral ou gestualmente, o não é a fundação a partir da qual se
constrói nossa principal característica: a liberdade, a capacidade de
ultrapassar as determinações da natureza e das situações presumidamente
limitantes. Só quem é capaz de dizer o
não pode dizer o sim, isto é,
pode escolher e acatar deliberadamente o curso das circunstâncias e das
exigências externas e internas.
Ser humano é ser junto. É
necessário negar a afirmação liberticida de que “a minha liberdade acaba quando começa a do outro”. A minha
liberdade acaba quando acaba a do outro; se algum humano, ou humana, não é
livre, ninguém é livre.
Se alguém não for livre da fome,
ninguém é livre da fome. Se algum homem ou mulher não for livre da
discriminação, ninguém é livre da discriminação. Se alguma criança não for
livre da falta de escola, de família, de lazer, ninguém é livre.
É preciso resgatar a paixão por
uma idéia irrecusável: gente foi feita para ser feliz! E esse é nosso trabalho;
não só nosso, mas também nosso. Paixão pela inconformidade de as coisas serem
como são; paixão pela derrota da desesperança; paixão pela idéia de, procurando
tornar as pessoas melhores, melhorar a si mesmo ou mesma; paixão, em suma, pelo
futuro.
Nosso tempo é este hoje em que já
se encontra, em gestação, o amanhã. Não qualquer, mas um amanhã intencional, planejado,
provocado agora. Um amanhã sobre o qual não possuímos certezas, mas que sabemos
possibilidade.
Pode parecer romântico (até piegas); no entanto, é dessa utopia
que não nos podemos apartar, sob a pena de perdermos o sentido de humanidade.
Há um ditado chinês que diz que: “...
se dois homens vêm andando por uma
estrada, cada um carregando um pão, e, ao se encontrarem, eles trocam os pães,
cada homem vai embora com um; porém, se dois homens vêm andando por uma
estrada, cada um carregando uma idéia, e, ao se encontrarem, eles trocam as
idéias, cada homem vai embora com duas...”!
Quem sabe é esse mesmo o sentido
do nosso fazer: repartir idéias, para todos terem pão...
Afinal, “pensar ainda não dói...”! (afirmo eu...)
Este
texto é resultante de excertos de CORTELLA, M.S.
A
Escola e o Conhecimento (fundamentos epistemológicos e políticos),
São
Paulo, Cortez/Instituto Paulo Freire,1998.
Leituras & Pensamentos da Madrugada
Publicado
no Site Kasal – Vitória – ES
www.konvenios.com.br/articulistas
Jornais
e Revistas do RS,SC e PR
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